Toda banda ou artista que canta/compõe música em inglês aqui no Brasil já ouviu isso milhares de vezes:
"Tá pagando pau pra gringo? Canta em português, pô, tu nasceu no Brasil!"
Logicamente nem sempre com esse tom agressivo, mas com certeza MUITAS variações desse argumento.
Aí você grava músicas em português, e tem que ouvir:
"Ahhh, mas tá fazendo isso só pra fazer média, né, paga pau!".
Eu tenho discos gravados dentro dos 2 idiomas. Também tenho composições em latim (a música "Dies Irae"), que é um idioma que domino, e música em Guarani ("Carcará-Vingança"). Pretendo em algum momento lançar um disco só com letras em espanhol também, pois adoro a língua.
Poderia ficar enrolando em dar minha opinião, mas aqui está ela: esse pensamento faz tanto sentido quanto o Manuscrito Voynich. É uma opinião escrotaça que deixa de considerar um zilhão de fatos básicos.
O Purismo cultural musical
Vamos analisar mais a fundo.
Essa ideia de que se você nasceu em determinado país você DEVE se expressar apenas dentro da lingua e de gêneros nacionais recebe vários nomes, sendo o mais comum o nome "Purismo cultural", ou "Purismo musical,".
Não vou nem discutir isso em âmbito geral. Vou focar apenas dentro do Horror Punk.
Faz sentido cobrar por Purismo cultural dentro do horror punk?
Faz sentido cobrar Purismo cultural dentro de um gênero que surgiu nos Estados Unidos na década de 70? Peço que se atentem as palavras "ESTADOS UNIDOS".
O horror punk não surgiu no Brasil.
Se é pra ser purista cultural, não se devia sequer estar tocando esse estilo.
A questão linguística
"Aí, TLHP, mas cantar em português facilita o entendimento, a mensagem".
Sim, concordo. Se o seu foco for exclusivamente o mercado nacional, o enorme e GIGANTESCO cenário horror punk brasileiro, está valendo. Desculpem a ironia, mas temos sim que reconhecer que a cena nacional de horror punk, ainda que competente, variada e produtiva, com muita gente boa e bandas incríveis, é muito, muito pequena.
Qual é o problema se a banda almeja entrar no mercado internacional? Cantar em inglês pode ser uma ferramenta facilitadora.
"Ahhh, então você vai se vender, é isso?"
Não. Mas se eu gosto da minha música, e quero que ela chegue ao maior número de pessoas, porque não?
Todo mês eu pago as fraldas e o leite do meu filho com a grana que pinga no Bandcamp do TLHP GRAVEYARD, e TODAS as vendas são de pessoas FORA do Brasil, raríssimas exceções.
Mesmo quando canto em português acontece um fenômeno curioso: o meu disco "A Morte Veio antes do segundo Take", com 13 músicas cantadas em português, tem mais downloads na Argentina e nos USA do que aqui do Brasil.
Em números absolutos (contando até hoje, 8 de Novembro de 2021) foram 27 downloads da Argentina, 43 dos Estados Unidos, e apenas 19 do Brasil.
O Contato com outros idiomas passa pelo histórico de vida de cada um
Outro fator a ser considerado é o quanto uma segunda língua é natural para você. Eu falo inglês fluente desde meus 13 anos de idade, e trabalho como professor desde que tinha 18 (hoje tenho 38).
"Ahhh, mas se você é um Playboyzinho, não tenho a ver com isso, cara"
Na verdade, sou filho de uma empregada doméstica e um encanador. Nem meu pai nem minha mãe concluíram sequer o ensino fundamental.
Sou autista, o que traz uma série de consequências bem limitantes em minha vida. Não consigo fazer 1 milhão de coisas que para quase todo mundo é absolutamente trivial. Não consigo usar lápis, por exemplo, pois o som do grafite no papel me dá crises de desregulação (pesquisem sobre isso, é um porre).
Mas por outro lado, também em decorrência do autismo, eu tenho uma grande facilidade de aprender certas coisas de forma rápida e totalmente auto didata, como idiomas.
Aprendi inglês, espanhol e Latim por conta disso.
E junte a isso o fato de meu hiperfoco autista ser a literatura, temos um cenário em que para mim esses idiomas são tão presentes em minha vida quanto o próprio português.
Vivemos em um mundo interconectado, onde as informações chegam de lugares próximos e distantes.
A maioria das pessoas que defendem esse Purismo quase sempre estão vestindo camisas e usando celulares feitos na China, e já passaram horas escutando Ramones, Misfits, Metallica, Iron Maiden, Deep Purple. Vestem tênnis de marcas americanas e se amarram em motocicletas feitas em uma fábrica lá do Tenesse.
E como eu falei, em minha vida, esses outros idiomas são super comuns.
Agora, na hora de compor, para agradar ultra nacionalistas que bebem Black Label eu preciso fingir que inglês é uma língua com a qual eu não estou familiarizado?
Não faz sentido.
Rock and roll, punk rock, horror punk são estilos que se tornaram universais. Eles não saíram de suas fronteiras para serem "aprisionadas" em outras. Isso sim é desvirtuar a essência desses estilos.
Esses estilos sempre pregam a liberdade. Rock and roll é liberdade.
E não dá pra apoiar a liberdade cagando regra sobre o que as pessoas devem fazer.
Se quiser cantar horror punk em sanscrito arcaico, cante: isso não faz de você um vendido paga pau de gringo, faz de você apenas um artista cantando em sanscrito arcaico.
Tem um certo presidente por aí que adora usar discurso de Purismo cultural...